quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A Quem Fica


“... Acordemos, então, que não é prefácio isto, mas aviso simples ou prevenção, como aquele derradeiro que o viajante, já no limiar da porta, já postos os olhos no horizonte próximo, ainda deixa a quem lhe ficou a cuidar das flores.

... A felicidade fique o leitor sabendo, tem muitos rostos. Viajar é, provavelmente, um deles. Entregue suas flores a quem saiba cuidar delas, e comece”.

Acertou quem reconheceu aqui a escrita de Saramago.

São trechos do prefácio do seu “Viagem a Portugal”. Livro para ser lido ao som de um fado na voz de Amália Rodrigues, de um copo de Vinho do Porto e de um Pastel de Belém que, com certeza, deixarão algumas marcas na brancura das páginas e que, por sua vez, também nos marcarão em algum lugar.

Não recomendo a leitura como um guia de viagem, nem Saramago o faz, não siga o itinerário dele, procure o seu caminho dentro das possibilidades dos caminhos que um país com alma oferece e que um escritor/viajante transforma no Portugal de cada um.

Mas não é de viagem que quero falar. Penso nas flores.




Vejo o pequeno ou a pequena ao lado dos avós ouvindo o último aviso da mãe sobre algum cuidado indispensável que não poderia ser esquecido. Vejo seus olhos no horizonte, divididos entre o prazer da viagem, “são só alguns dias”, e a dificuldade da separação. O pai aproveita de se ocupar com o carro para esconder a emoção.

Naquele tempo bastava trocar os pequenos de quarto e tudo estava arranjado. A educação e os cuidados trocavam suavemente de mãos.




Mas assim mesmo aquele momento era horrível. A pequena ou o pequeno sentindo-se abandonados trocados por qualquer prazer, está claro que não pensavam assim, sentiam assim, esperneavam e choravam. E não havia nada que os consolasse, nem o colo quente da avó e nem todas as suas promessas de comer, dormir e brincar a qualquer hora.

E quase sem perceber o pequeno ou a pequena passam para o outro lado da porta.
Lançam avisos aos que ficam agora com suas crianças, avisos mais complexos. A vida destas crianças necessita de uma agenda de várias folhas com todos os compromissos, remédios para todas as alergias, e médicos para as diversas mazelas que sempre as crianças tiverem, mas que agora necessitam de olhos super treinados, os olhos antigos não servem mais.

A troca de mãos já não é tão suave, a insegurança de quem vive nos tempos modernos precisa mais do que uma avó amorosa para lhes acalmar, precisa de especialistas, afinal, estas crianças são gourmets exigentes, executivos com múltiplas tarefas e frágeis ao ponto de precisarem de supervisão constante. Grandes perigos podem se apresentar para elas.

E de novo quase sem perceber, na porta lançam o olhar para trás: os pequenos se foram e outros pequenos ainda não chegaram.

Sobram de fato as flores, as samambaias ou talvez um cachorro que, percebendo a partida, se agita um pouco para logo depois se postar à porta à espera.

A lista de procedimentos desta vez é para quem parte.

Para as flores, a primavera acontece todos os anos; para as gentes, é preciso criá-la sempre.



E assim, depois de tanto tempo sem ir ao Sótão e ao Porão, eu volto.




E lá se vão 45 dias de primavera.

5 comentários:

kika schuch disse...

Estava com saudade destes escritos que tanto me emocionam,tomara que agora eles venham mais seguido e ainda mais carregados de emoção, pois o tempo vai passando, as coisas vão mudando, os sentimentos aflorando sempre de maneiras diferentes e essa cabecinha nos brindando com belos textos, cada um ao seu tempo!
Um beijo, Kika

Martha Estima Scodro disse...

Kika, tudo tems eu tempo, menos as emoções, destas não somos donos.
Beijo e obrigada
Martha

Martha Estima Scodro disse...

A magia de viajar esta em simultaneamente conhecermos novos horizontes, e termos lembranças gostosas do passado, quando nos deparamos com situações ou objetos que nos remetem a ele.

denise disse...

Ah, o Portugal de cada um , as flores, as partidas, a insuficiência de avós amorosos...outra viagem este lindo texto.

Martha Estima Scodro disse...

Denise,
Ganhamos 2 pares de avós quando nascemos, mas devíamos ter alguns de reserva, pois a falta deles, dói...

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