terça-feira, 3 de agosto de 2010





Clássico é clássico, dispensa comentários, apresentações, prólogos, e tudo aquilo que se fala antes do principal, na maioria das vezes para demonstrar que somos mais cultos e eruditos do que os outros mortais.



Começar a brincadeira com Marcel Proust é muito sério. Todo mundo conhece, já ouviu falar, leu um resumo em poucas linhas das suas Madeleines. Mas tem os que não conhecem, nunca ouviram falar, e estes são os melhores, pois o susto que levam ao se verem lidos pelo texto é enorme. Ficam marcados para sempre e podem acreditar que de vez em quando vão perguntar: "Como é mesmo aquela história dos bolinhos e do chá?"


Mas o Sótão e Porão é para isto mesmo. Ler de novo, ver de novo, apreciar com calma cada farelinho deste texto que na nossa opinião é o pai de todos os outros que falam de recordações, e principalmente dos sabores da infância.


Você nunca comeu madeleines quando era pequeno? Não faz mal, alguma coisa tem sabor, cheiro, ou calor de infância, para você.

Relaxe e leia saboreando algo gostoso e não esqueça do chá, mas pode ser um vinho também.

E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray (pois nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia Léonie me oferecia, depois de o ter mergulhado em seu chá da Índia ou de tília, quando ia cumprimentá-la em seu quarto. O simples fato de ver a madalena não me havia evocado coisa alguma antes que a provasse; talvez porque, como depois tinha visto muitas, sem as comer, nas confeitarias, sua imagem deixara aqueles dias de Combray para se ligar a outros mais recentes; talvez porque, daquelas lembranças abandonadas por tanto tempo fora da memória, nada sobrevivia, tudo se desagregara; as formas – e também a daquela conchinha de pastelaria, tão generosamente sensual sob sua plissagem severa e devota – se haviam anulado ou então, adormecidas, tinham perdido a força de expansão que lhes permitiria alcançar a consciência. Mas quando mais nada subsiste de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando se ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação.
E mal reconheci o gosto do pedaço de madalena molhado em chá que minha tia me dava (embora ainda não soubesse, e tivesse de deixar para muito mais tarde tal averiguação, por que motivo aquela lembrança me tornava tão feliz), eis que a velha casa cinzenta, de fachada para a rua, onde estava seu quarto, veio aplicar-se, como um cenário de teatro, ao pequeno pavilhão que dava para o jardim e que fora construído para meus pais aos fundos dela (esse truncado trecho da casa era só o que eu recordava até então); e, com a casa, a cidade toda, desde a manhã à noite, por qualquer tempo, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas por onde eu passava e as estradas que seguíamos quando fazia bom tempo. E, como nesse divertimento japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia d’água pedacinhos de papel, até então indistintos e que depois de molhados, se estiram, se delineiam, se cobrem, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores de nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e toda a Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha taça de chá.


No caminho de Swann
Marcel Proust; tradução Mário Quintana
Editora Globo