Em certos tempos da vida o melhor a se fazer é ficar quieto. Assim pensava Maria de manhã sozinha em casa com uma xícara de café na mão.
Quieta ela já estava fazia tempo. Por fora, vamos esclarecer bem, pois sua cabeça era um tormento dos bons e dos ruins.
Filhos criados, mas não totalmente independentes, marido no auge da capacidade de trabalho e, portanto, com pouco tempo disponível. Pai e mãe já em outro mundo.
O que sobra para Maria?
E ela responde rápido: “Eu mesmo”.
A vida de cabeça para baixo é o que ela pensa.
Quem sabe colocar tudo isto no papel e dar vazão a sua vontade de escrever pode ser uma solução. Mas não é uma escritora e sua autocrítica é tão grande que não conseguiria nem dar um título ao texto. Todos seriam, por princípio, ruins.
Outro dia ela leu uma frase de Van Gogh: “Se uma voz interior disser: - Você não é um pintor. Continue a pintar até a voz se calar”.
Maria ri um pouco: “Deve ter sido assim que ele pintou tanto e até arrancou a orelha porque a voz não deve ter se calado tão facilmente. Mas o fato é que ele pintou e eu poderia fazer o mesmo com algumas vozes que me dizem que não sou boa em coisas que gostaria de experimentar”.
Estas vozes interiores, continua Maria a pensar enquanto enche mais uma xícara de café, não apareciam com muita frequência na sua vida, pois eram tantas coisas a fazer que quando tinha tempo para ouvi-las era à noite na hora de dormir e logo adormeciam abraçadas: as vozes, Maria e o cansaço do dia.
O café quente leva Maria a uma manhã fria de quando era muito pequena. Pai, mãe e irmão na mesa.
A vida pronta como aquele café: a manteiga geladinha derretendo no pão quente que o pai tinha acabado de comprar, por cima da manteiga um pouco de açúcar. O suco de laranja espremido na hora, num espremedor de vidro grosso que até hoje está na sua casa, que misturado ao doce do açúcar lhe davam um arrepio gostoso na boca.
Controlados pelo relógio, saíam todos e se encontravam de novo ao meio dia para almoçar.
E de novo tudo pronto. Bife, arroz, feijão, salada e algumas variações.
E de novo todos saíam para suas ocupações.
À noite, mesa posta para o lanche: pão, presunto, queijo e Coca-Cola. Às vezes sopa, uma sopa tão quente que o suco tomado no dia seguinte doía na língua queimada.
E assim ia a vida.
Começa a ficar triste. São tantas saudades, carências, solidão, amigos distantes, e Maria não quer começar o dia assim.
Olha na janela, é uma cidade desconhecida, e mesmo que fosse a conhecida, seria este dia diferente?
É até melhor que seja a desconhecida, dá-lhe mais conforto. A conhecida lhe daria angústia e a falsa sensação de que está em casa e nada mudou.
Na desconhecida tem que fazer um esforço para entender os novos códigos, a nova língua, os novos costumes e até as simplicidades do dia-a-dia acontecem de forma diferente.
Deixa a xícara de café na mesa, e vai ao escritório. Liga o computador para olhar suas mensagens. Não recebe nada muito importante nunca, mas gosta de ler algumas coisas que as amigas mandam.
E uma manda um texto do Chico Buarque com foto em um café de Paris vestindo um sobretudo cinza. “Ai que lindo!” pensa ela.
Pelo início do texto Maria acha que não é dele, mas não faz mal, lê até o fim.
E o fim diz o seguinte: “Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma....”
É isto! Os olhos verdes podem não ser os autores da frase, mas acertaram em cheio.
Maria pensa: Quando a vida começou a ficar complicada? Quando aqueles quatro que tomavam café juntos se multiplicaram e se afastaram pensando que continuariam juntos?
Voluntariosa e um pouco arrogante, talvez tenha se perdido procurando algo que não sabia o que era, deixando para trás o pãozinho com manteiga e açúcar.
Levanta-se e volta à sala.
Tira a mesa, lava a louça, toma banho e vai procurar pela vida nas pequenas felicidades que estão à mão.
A sua vida, aquela que ninguém pode viver por ela.
A vida está pronta de novo, como a mesa posta para o café, o almoço e o jantar.
“Obrigada, Chico, seja você de Holanda ou não” pensa Maria.