quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O último comentário feito neste blog dizia “..."Ó Maria, diz àquela cotovia que cante mais devagar, não vá o menino acordar..." e é lógico que provocou uma busca da poesia em questão, pois o verso é de uma beleza daquelas que por aqui são as mais apreciadas: as que falam de um momento na vida da gente que mesmo não tendo consciência que vivemos marcaram para sempre o nosso corpo e a nossa memória.



A cena dos pais preocupados com o sono do filho onde nem mesmo um passarinho de canto delicado como a cotovia podia incomodar, é tão linda que até vemos os dois com o dedo nos lábios mandando o passarinho calar.











O poema é de António Nobre, poeta português , um dos representantes do movimento simbolista em Portugal. Morreu cedo de tuberculose aos 33 anos.




Publicou somente um livro antes de morrer, chamado "SÓ" , que ele mesmo declarava :”o livro mais triste que há em Portugal” .


Sua obra é marcada por lembranças felizes da infância, das paisagens e das gentes simples do norte de Portugal, no Douro onde nasceu.


Apesar de sua obra demonstrar um sentimentalismo aparentemente simples, refletido em temas recorrentes : a saudade, o exílio, a pátria e a poesia, este sentimentalismo ganha uma dimensão mítica, por vezes um certo visionarismo, na procura de um passado pessoal perdido pelo desenraizamento da sua pátria ou pelo sentimento de amargura que a sua estagnação lhe causa, como se percebe no seu poema Carta a Manuel (quem sabe uma nova procura?)


Estas notas foram retiradas da Wikipedia, lógico, que junto com Mr. Google tem o poder de nos fazer sorrir, lembrar e sonhar, mas por favor que alguém peça que nosso sono não seja interrompido, ou melhor que só seja interrompido por um beijo como o de Eros em Psique.
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O SONO DE JOÃO




O João dorme... (Ó Maria


Dize àquela cotovia


Que fale mais devagar:


Não vá, o João, acordar...)


Tem só um palmo de altura

E nem meio de largura:

Para o amigo orangotango


O João seria... um morango!


Podia engoli-lo um leão

Quando nasce!


As pombas são


Um poucochinho maiores...


Mas os astros são menores!





O João dorme... Que regalo!

Deixá-lo dormir, deixá-lo!


Calai-vos águas do moinho!


Ó mar! fala mais baixinho...


E tu mãe! e tu, Maria!

Pede àquela cotovia


Que fale mais devagar:


Não vá, o João, acordar...





O João dorme, o inocente!


Dorme, dorme, eternamente,


Teu calmo sono profundo!


Não acordes para o mundo,


Pode levar-te a maré:


Tu mal sabes o que isto é...


Ó mãe! canta-lhe a canção,


Os versos do teu irmão:


« Na vida que a dor povoa,


Há só uma coisa boa,


Que é dormir, dormir, dormir...


Tudo vai sem se sentir.»





Deixa-o dormir, até ser


Um velhinho... até morrer!






E tu vê-lo-ás crescendo


A teu lado (estou vendo


João! que rapaz tão lindo!)

Mas sempre, sempre dormindo...




Depois, um dia virá


Que (dormindo) passará


Do berço onde agora dorme,


Para outro, grande, enorme:


E as pombas que eram maiores


Que João... ficarão menores!






Mas para isso, ó Maria!


Dize àquela cotovia


Que fale mais devagar:


Não vá, o João, acordar...



E os anos irão passando.







Depois, já velhinho,


quando(serás velhinha também)


Perder a cor que, hoje, tem,


Perder as cores vermelhas





E for cheiinho de engelhas,


Morrerá sem o sentir:


Isto é, deixa de dormir:

Acorda e regressa ao seio


De Deus, que é donde ele veio...






Mas para isso, ó Maria!


Pede àquela cotovia


Que fale mais devagar:


Não vá, o João, acordar....


António Nobre
Paris, 1891..in. "Só"Ed. da Livraria Tavares Martins - 1968