O último comentário feito neste blog dizia “..."Ó Maria, diz àquela cotovia que cante mais devagar, não vá o menino acordar..." e é lógico que provocou uma busca da poesia em questão, pois o verso é de uma beleza daquelas que por aqui são as mais apreciadas: as que falam de um momento na vida da gente que mesmo não tendo consciência que vivemos marcaram para sempre o nosso corpo e a nossa memória.
A cena dos pais preocupados com o sono do filho onde nem mesmo um passarinho de canto delicado como a cotovia podia incomodar, é tão linda que até vemos os dois com o dedo nos lábios mandando o passarinho calar.
O poema é de António Nobre, poeta português , um dos representantes do movimento simbolista em Portugal. Morreu cedo de tuberculose aos 33 anos.
Publicou somente um livro antes de morrer, chamado "SÓ" , que ele mesmo declarava :”o livro mais triste que há em Portugal” .
Sua obra é marcada por lembranças felizes da infância, das paisagens e das gentes simples do norte de Portugal, no Douro onde nasceu.
Apesar de sua obra demonstrar um sentimentalismo aparentemente simples, refletido em temas recorrentes : a saudade, o exílio, a pátria e a poesia, este sentimentalismo ganha uma dimensão mítica, por vezes um certo visionarismo, na procura de um passado pessoal perdido pelo desenraizamento da sua pátria ou pelo sentimento de amargura que a sua estagnação lhe causa, como se percebe no seu poema Carta a Manuel (quem sabe uma nova procura?)
Estas notas foram retiradas da Wikipedia, lógico, que junto com Mr. Google tem o poder de nos fazer sorrir, lembrar e sonhar, mas por favor que alguém peça que nosso sono não seja interrompido, ou melhor que só seja interrompido por um beijo como o de Eros em Psique.
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O SONO DE JOÃO
O João dorme... (Ó Maria
Dize àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá, o João, acordar...)
Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O João seria... um morango!
Podia engoli-lo um leão
Quando nasce!
As pombas são
Um poucochinho maiores...
Mas os astros são menores!
O João dorme... Que regalo!
Deixá-lo dormir, deixá-lo!
Calai-vos águas do moinho!
Ó mar! fala mais baixinho...
E tu mãe! e tu, Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá, o João, acordar...
O João dorme, o inocente!
Dorme, dorme, eternamente,
Teu calmo sono profundo!
Não acordes para o mundo,
Pode levar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é...
Ó mãe! canta-lhe a canção,
Os versos do teu irmão:
« Na vida que a dor povoa,
Há só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir...
Tudo vai sem se sentir.»
Deixa-o dormir, até ser
Um velhinho... até morrer!
E tu vê-lo-ás crescendo
A teu lado (estou vendo
João! que rapaz tão lindo!)
Mas sempre, sempre dormindo...
Depois, um dia virá
Que (dormindo) passará
Do berço onde agora dorme,
Para outro, grande, enorme:
E as pombas que eram maiores
Que João... ficarão menores!
Mas para isso, ó Maria!
Dize àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá, o João, acordar...
E os anos irão passando.
Depois, já velhinho,
quando(serás velhinha também)
Perder a cor que, hoje, tem,
Perder as cores vermelhas
E for cheiinho de engelhas,
Morrerá sem o sentir:
Isto é, deixa de dormir:
Acorda e regressa ao seio
De Deus, que é donde ele veio...
Mas para isso, ó Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá, o João, acordar....
António Nobre
Paris, 1891..in. "Só"Ed. da Livraria Tavares Martins - 1968