Descobri no sótão algumas lembranças de domingos que não gostaria que as traças e os cupins se fartassem. São boas demais para serem esquecidas.
Deliciem-se, afinal de contas, amanhã é domingo....
Tinha um ritual na minha infância que seguíamos à risca: COMPRAR DOCES NA CONFEITARIA APÓS A MISSA DE DOMINGO.
Comprávamos para a sobremesa do almoço ou para o café da tarde depois da sesta.
A Confeitaria, chamava-se Sol de Ouro, lembrava confeitarias européias, muita madeira, vitrines grandes de vidro e reluzentes metais.
Os doces eram espetaculares, mistos de pâtisserie francesa com portuguesa, faziam com que a nossa boca enchesse de água só de pensar em ir até lá.
Qualquer almoço ou chá da tarde era logo elevado à categoria de “acontecimento” se a dona da casa anunciasse:
- Estive muito atarefada para fazer as sobremesas e comprei uns doces no Sol de Ouro.
Pronto, era o suficiente para tudo o que já tínhamos comido virar lembrança.
Que viessem logo!
Nas prateleiras, como instrumentos de uma orquestra, os doces cuidadosamente arrumados se apresentavam para o concerto diário.
Na primeira fila, as Cordas, os doces de ovos, com muitas, muitas gemas.
O Quindim era o primeiro violino: o “spalla”.
Para sorte de todos, ao contrário do que acontece em uma orquestra, eram muitos os “spallas” nas prateleiras. Desconfio que fossem eles a inspiração do nome da loja.
A transparência quase etérea da parte de cima apoiava-se no côco da parte de baixo. Eram sóis amarelo-brilhante cuidadosamente disposto em forminhas prateadas.
As outras Cordas, Violas, Violoncelos, Contrabaixos, estavam ali nos Bom-bocados, Queijadinhas de crosta crocante, Toucinhos dos Céu.
A Harpa? Os Papos de Anjo, claro, imersos em delicada calda doce.
As massas folhadas, tão leves, não resistiam ao Sopro das Flautas, Oboés e Clarinetes.
As Madrilenas - pequenos discos de massa folhada recheados de doce de leite, as Mil Folhas e os Biscoitos Champagne esperavam o momento de se dissolverem no ar e na boca.
Havia também alguns docinhos, que tais como os instrumentos de Percussão mais comuns – Triângulos e Pratos pareciam estar por ali só compondo o conjunto.
Engano. Puro engano.
Eram esferas tão perfeitas que o comum se transformava em encanto.
Os Camafeus com nozes escolhidas a dedo, os Olhos de Sogra – com as ameixas todas do mesmo tamanho, os Caramelados, as Trouxinhas de Nozes, todos tinham uma versão mais grosseira em outras confeitarias, mas ali, não. Ali, a delicadeza reinava.
Esta orquestra de açúcar guardava, como em tudo neste mundo, seus contrastes, e não tardava a mostrar ao lado de toda esta delicadeza - o vigor dos Bumbos e das Caixas.
As e-nor-mes Bombas de Chocolate e Creme que, junto aos Merengões recheados de doce de leite e doce de ovos tinham, na boca, o mesmo poder destes instrumentos – ao comê-los tudo em volta parava, principalmente pela dificuldade da tarefa, difícil com as mãos, pior ainda de garfo e faca.
Uma Sinfônica que se preze não pode abrir mão das Teclas: Piano e Cravo.
Ao contrário da maioria dos outros instrumentos, para tocá-los é indispensável que o músico esteja sentado, ou alguém já ouviu Chopin tocado de pé?
Para comer estes doces, devia-se estar sentado e concentrado.
Doces feitos de um pão-de-ló tão fino e macio que ao tocar o céu da boca desmanchava-se e misturava-se ao recheio - ora um doce de leite, ora um doce de ovos - os olhos se fechavam e suspiros suaves enchiam os espíritos. Eram Bem-casados, Casados em pé, Ratinhos, todos cobertos com uma fina camada de fondant e cuidadosamente decorados com caramelos, chocolates e doce de ovos.
E era meu pai, o maestro da doçura, que aos domingos, de mãos dadas comigo, escolhia os sabores e compunha a sinfonia.
Com uma batuta imaginária ele determinava quais doces pulariam das prateleiras de vidro para a caixa de papelão. Mais tarde ao redor da mesa os apreciaríamos com calma, mas com quase nenhuma parcimônia.
No meio daquela pequena agitação de cidade do interior eu esperava por uma frase.
Tão doce quanto qualquer um daqueles doces embalados, tão carinhosamente pronunciada quanto o carinho que o laço era dado na fita, e acompanhada de um piscar cúmplice de olhos:
- Para a minha filha, a senhora embrulhe 200 gr. de Estrelinhas e Casadinhos[1], por favor.
Domingos de antigamente, domingos de toda a vida.
[1] Estrelinhas, um biscoito amanteigado coberto com uma fina camada de um caramelo "puxa" com o desenho de uma estrela num fio de caramelo queimado e Casadinhos, dois biscoitos amanteigados recheados com doce de leite e cobertos com fina camada de açúcar de confeiteiro.
Deliciem-se, afinal de contas, amanhã é domingo....
Tinha um ritual na minha infância que seguíamos à risca: COMPRAR DOCES NA CONFEITARIA APÓS A MISSA DE DOMINGO.
Comprávamos para a sobremesa do almoço ou para o café da tarde depois da sesta.
A Confeitaria, chamava-se Sol de Ouro, lembrava confeitarias européias, muita madeira, vitrines grandes de vidro e reluzentes metais.
Os doces eram espetaculares, mistos de pâtisserie francesa com portuguesa, faziam com que a nossa boca enchesse de água só de pensar em ir até lá.
Qualquer almoço ou chá da tarde era logo elevado à categoria de “acontecimento” se a dona da casa anunciasse:
- Estive muito atarefada para fazer as sobremesas e comprei uns doces no Sol de Ouro.
Pronto, era o suficiente para tudo o que já tínhamos comido virar lembrança.
Que viessem logo!
Nas prateleiras, como instrumentos de uma orquestra, os doces cuidadosamente arrumados se apresentavam para o concerto diário.
Na primeira fila, as Cordas, os doces de ovos, com muitas, muitas gemas.
O Quindim era o primeiro violino: o “spalla”.
Para sorte de todos, ao contrário do que acontece em uma orquestra, eram muitos os “spallas” nas prateleiras. Desconfio que fossem eles a inspiração do nome da loja.
A transparência quase etérea da parte de cima apoiava-se no côco da parte de baixo. Eram sóis amarelo-brilhante cuidadosamente disposto em forminhas prateadas.
As outras Cordas, Violas, Violoncelos, Contrabaixos, estavam ali nos Bom-bocados, Queijadinhas de crosta crocante, Toucinhos dos Céu.
A Harpa? Os Papos de Anjo, claro, imersos em delicada calda doce.
As massas folhadas, tão leves, não resistiam ao Sopro das Flautas, Oboés e Clarinetes.
As Madrilenas - pequenos discos de massa folhada recheados de doce de leite, as Mil Folhas e os Biscoitos Champagne esperavam o momento de se dissolverem no ar e na boca.
Havia também alguns docinhos, que tais como os instrumentos de Percussão mais comuns – Triângulos e Pratos pareciam estar por ali só compondo o conjunto.
Engano. Puro engano.
Eram esferas tão perfeitas que o comum se transformava em encanto.
Os Camafeus com nozes escolhidas a dedo, os Olhos de Sogra – com as ameixas todas do mesmo tamanho, os Caramelados, as Trouxinhas de Nozes, todos tinham uma versão mais grosseira em outras confeitarias, mas ali, não. Ali, a delicadeza reinava.
Esta orquestra de açúcar guardava, como em tudo neste mundo, seus contrastes, e não tardava a mostrar ao lado de toda esta delicadeza - o vigor dos Bumbos e das Caixas.
As e-nor-mes Bombas de Chocolate e Creme que, junto aos Merengões recheados de doce de leite e doce de ovos tinham, na boca, o mesmo poder destes instrumentos – ao comê-los tudo em volta parava, principalmente pela dificuldade da tarefa, difícil com as mãos, pior ainda de garfo e faca.
Uma Sinfônica que se preze não pode abrir mão das Teclas: Piano e Cravo.
Ao contrário da maioria dos outros instrumentos, para tocá-los é indispensável que o músico esteja sentado, ou alguém já ouviu Chopin tocado de pé?
Para comer estes doces, devia-se estar sentado e concentrado.
Doces feitos de um pão-de-ló tão fino e macio que ao tocar o céu da boca desmanchava-se e misturava-se ao recheio - ora um doce de leite, ora um doce de ovos - os olhos se fechavam e suspiros suaves enchiam os espíritos. Eram Bem-casados, Casados em pé, Ratinhos, todos cobertos com uma fina camada de fondant e cuidadosamente decorados com caramelos, chocolates e doce de ovos.
E era meu pai, o maestro da doçura, que aos domingos, de mãos dadas comigo, escolhia os sabores e compunha a sinfonia.
Com uma batuta imaginária ele determinava quais doces pulariam das prateleiras de vidro para a caixa de papelão. Mais tarde ao redor da mesa os apreciaríamos com calma, mas com quase nenhuma parcimônia.
No meio daquela pequena agitação de cidade do interior eu esperava por uma frase.
Tão doce quanto qualquer um daqueles doces embalados, tão carinhosamente pronunciada quanto o carinho que o laço era dado na fita, e acompanhada de um piscar cúmplice de olhos:
- Para a minha filha, a senhora embrulhe 200 gr. de Estrelinhas e Casadinhos[1], por favor.
Domingos de antigamente, domingos de toda a vida.
[1] Estrelinhas, um biscoito amanteigado coberto com uma fina camada de um caramelo "puxa" com o desenho de uma estrela num fio de caramelo queimado e Casadinhos, dois biscoitos amanteigados recheados com doce de leite e cobertos com fina camada de açúcar de confeiteiro.