segunda-feira, 20 de junho de 2011

Mãos soltas, almas, não!





Um homem nasceu.
Nascemos todos mais uma vez.

Um homem morreu.
Morremos todos um pouco.

Seus dons ficaram espalhados por todos que estavam à sua volta.






Alguém fala ao longe: sairá da minha vida pelo mesmo lugar que entrou - A porta da frente da minha casa!







Busco mais uma vez em Borges, a universalidade da poesia. Esta caiu nas minhas mãos ontem. Não à toa.

Os dons

Foi-lhe ofertada a música invisível
que é um dom do tempo e que no tempo cessa;
foi-lhe ofertada a trágica beleza,
foi-lhe ofertado o amor, coisa terrível.

Foi-lhe ofertado saber quem em meio às belas
mulheres deste mundo há apenas uma;
pôde uma tarde descobrir a lua
e com a lua a álgebra das estrelas.

Foi-lhe ofertada a infâmia. Docilmente
ele estudou as infrações da espada,
a ruína de Cartago, a apertada
batalha do Oriente com o Poente.

Foi-lhe ofertada a língua, essa mentira,
foi-lhe ofertada a carne, que é argila,
foi-lhe ofertada o obsceno pesadelo
e na vidraça o outro, o que nos mira.

Dos livros que o tempo acumulou
foram-lhe concedidas poucas folhas;
de Eléia, paradoxos comedidos,
que o desgaste do tempo não gastou.
O altivo sangue do amor humano
(a imagem é de um grego) lhe foi dado
por Esse cujo nome é uma espada
e que recita as letras para a mão.

Mais coisas lhe ofertaram, com seus nomes:
o cubo e a pirâmide e a esfera,
a inumerável areia, e a madeira
e um corpo para andar em meio aos homens.

Foi digno do sabor de cada dia;
eis tua história, que é também a minha.


Atlas,
trad. Heloisa Jahn
Companhia das Letras

Cecília, para você que gosta tanto de andar por aqui.