terça-feira, 21 de junho de 2011

De lembranças e pássaros







O Sótão e o Porão guardam coisas raras e preciosas.



Há sempre uma caixa cuidadosamente limpa e espanada com freqüência onde ficam a solidariedade e a amizade. Está sempre na frente, à mão, e constantemente tem que ser substituída por uma maior, pois, quanto mais se usa a solidariedade e se desfruta da amizade, mais elas crescem ocupando lugares ociosos que, por algum descuido, podem sorrateiramente serem surrupiados, por artigos menos nobres, mas humanos também.




As Traças por vezes barulhentas, por vezes falastronas, quando solidárias se calam num silêncio respeitoso. Ficam por perto, observam, oferecem algo e partem.



Assim também é a poesia. Não nos procura, ou melhor, nos procura sem que saibamos, e quando a encontramos nos lê de tal forma que nos coloca em grande silêncio – aquele dos entendimentos profundos.





Quando a poesia encontra a natureza, ou vice-versa, os silêncios são grandes, as imagens sutis e o resultado é o nosso alumbramento diante da simplicidade.





Ninguém melhor do que Manoel de Barros para esta mistura e esta singeleza; grande mestre de palavras simples, conta uma história de irmãos que me fez pensar em oferecê-la a uma grande amiga.





ÁRVORE


Um passarinho pediu a meu irmão para ser sua árvore.


Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho.


No estágio de ser essa árvore, meu irmão aprendeu de


sol de céu e de lua mais do que na escola.



No estágio de ser árvore meu irmão aprendeu para santo



mais do que os padres lhes ensinavam no internato.



Aprendeu com a natureza o perfume de Deus



seu olho no estágio de ser árvore aprendeu melhor o azul



E descobriu que uma casa vazia de cigarra esquecida



no tronco das árvores só serve pra poesia.



No estágio de ser árvore meu irmão descobriu que as árvores são vaidosas.



Que justamente aquela árvore na qual meu irmão se transformara,


envaidecia-se quando era nomeada para o entardecer dos


e tinha ciúmes da brancura que os lírios deixavam nos brejos.


Meu irmão agradecia a Deus aquela permanência em árvore


porque fez amizade com muitas borboletas."


Manoel de Barros

Ensaios Fotográficos

Poesia Completa

Leya, 2010


Claudia, escolha uma árvore que possa acolher as lembranças.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Mãos soltas, almas, não!





Um homem nasceu.
Nascemos todos mais uma vez.

Um homem morreu.
Morremos todos um pouco.

Seus dons ficaram espalhados por todos que estavam à sua volta.






Alguém fala ao longe: sairá da minha vida pelo mesmo lugar que entrou - A porta da frente da minha casa!







Busco mais uma vez em Borges, a universalidade da poesia. Esta caiu nas minhas mãos ontem. Não à toa.

Os dons

Foi-lhe ofertada a música invisível
que é um dom do tempo e que no tempo cessa;
foi-lhe ofertada a trágica beleza,
foi-lhe ofertado o amor, coisa terrível.

Foi-lhe ofertado saber quem em meio às belas
mulheres deste mundo há apenas uma;
pôde uma tarde descobrir a lua
e com a lua a álgebra das estrelas.

Foi-lhe ofertada a infâmia. Docilmente
ele estudou as infrações da espada,
a ruína de Cartago, a apertada
batalha do Oriente com o Poente.

Foi-lhe ofertada a língua, essa mentira,
foi-lhe ofertada a carne, que é argila,
foi-lhe ofertada o obsceno pesadelo
e na vidraça o outro, o que nos mira.

Dos livros que o tempo acumulou
foram-lhe concedidas poucas folhas;
de Eléia, paradoxos comedidos,
que o desgaste do tempo não gastou.
O altivo sangue do amor humano
(a imagem é de um grego) lhe foi dado
por Esse cujo nome é uma espada
e que recita as letras para a mão.

Mais coisas lhe ofertaram, com seus nomes:
o cubo e a pirâmide e a esfera,
a inumerável areia, e a madeira
e um corpo para andar em meio aos homens.

Foi digno do sabor de cada dia;
eis tua história, que é também a minha.


Atlas,
trad. Heloisa Jahn
Companhia das Letras

Cecília, para você que gosta tanto de andar por aqui.




sábado, 18 de junho de 2011

Tem alguém aï?











Nunca pensei que tivesse alguém tomando deste lugar, mas tenho ouvido com alguma freqüência que o lugar está abandonado.

Nem sempre dá para vir até aqui, mas parece que algumas pessoas gostam de dar uma passadinha e se ressentem quando não acham nada novo, acham que o dono não está dando a atenção adequada.










Existe um tempo em que é quase uma necessidade revirar as lembranças, outro tempo em que se gasta fabricando lembranças que um dia serão lembradas e há um tempo ainda em que se gasta procurando uma lembrança que não vivemos, mas que daríamos tudo para ter vivido.

Para estas últimas recorro a um dos poemas mais lindos de Borges, escolha pessoal e intransferível.





Elegia da Lembrança Impossível

O que não daria eu pela memória
De uma rua de terra com baixos taipais
E de um alto ginete enchendo a alba
(Com o poncho grande e coçado)
Num dos dias da planície,
Num dia sem data.
O que não daria eu pela memória
Da minha mãe a olhar a manhã
Na fazenda de Santa Irene,
Sem saber que o seu nome ia ser Borges,
O que não daria eu pela memória
De ter lutado em Cepeda
E de ter visto Estanislao del Campo
Saudando a primeira bala
Com a alegria da coragem.
O que não daria eu pela memória
Dos barcos de Hengisto,
Zarpando do areal da Dinamarca
Para devastar uma ilha
Que ainda não era a Inglaterra.
O que não daria eu pela memória
(Tive-a e já a perdi)
De uma tela de ouro de Turner,
Tão vasta como a música.
O que não daria eu pela memória
De ter sido um ouvinte daquele Sócrates
Que, na tarde da cicuta,
Examinou serenamente o problema
Da imortalidade,
Alternando os mitos e as razões
Enquanto a morte azul ia subindo
Dos seus pés já tão frios.
O que não daria eu pela memória
De que tu me dissesses que me amavas
E de não ter dormido até à aurora,
Dissoluto e feliz.

Tradução de Fernando Pinto do Amaral


Obrigada pela saudade que nem sabia que estavam sentindo.