sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Mais uma viagem a Portugal







Pouca terra e muito mar é assim que penso Portugal.

Lisboa sempre me espera linda já de manhã cedo e, apesar de toda a sua beleza, é o Tejo que enche meus olhos de desejo.

Descer a Av. da Liberdade no meio dos plátanos até a Praça do Comércio, dobrar à direita, e daí até Belém. Cumpro à risca este ritual. Não posso deixar de ver Lisboa por este ângulo, nem deixar de contemplar em silêncio e respeitosamente a sua história, a minha história.

Mosteiro dos Jerônimos, Padrão dos Descobrimentos, Torre de Belém:


começava ali a nova cara do mundo – Fernão de Magalhães, Vasco da Gama, Cabral e, muito mais tarde, José Estima, meu avô. Todos se lançaram a este mar desconhecido que bate nas areias finas e brancas de Belém, nas pedras do Guincho, da Boca Inferno




e do Cabo da Roca.






A primeira vez que vi o mar de Portugal foi a bordo de um navio, saindo de Lisboa ao entardecer: um dos meus primeiros descobrimentos, ou alumbramentos? O vento na proa soprava a História e trazia para mim o espírito dos portugueses – marinheiros, poetas, amantes – gente simples, mas mui VALOROSA.

Como resistir ao convite das velas brancas deslizando pelo Tejo? Embarcava com elas e me deixava levar.

Mais uma viagem a Portugal.

Desta vez as velas não me tentarão. Desta vez quero ficar em terra firme, quero ver a terra, a serra, o rio. Mas que viagem fazer? Qual terra, qual serra, qual rio buscar?

Olho para a minha estante e alguns amigos de longa data estão lá, prontos para me ajudar: Fernando Pessoa (que desde cedo me acompanha), Eça, Saramago, mais recentemente Miguel de Souza Tavares e sua mãe Sophia de Mello Breyner Andresen e, por último, Camões, que deveria ter sido o primeiro.

Logo na primeira busca Miguel me dá de presente este trecho do seu livro “No teu deserto”:

“(...) estávamos a amarrar em Gibraltar, debruçados na amurada do barco que nos tinha trazido do Marrocos durante a noite, olhando a manhã de Dezembro, limpa e deslumbrante sobre as águas quietas do Estreito, e tu me perguntaste:
- Em que pensas?
- Estava a pensar que há viagens sem regresso. E que nunca mais vou voltar desta viagem. Nunca mais vou regressar do deserto.”

E comecei a entender o que se passa comigo cada vez que chego à Lisboa.

Portugal é a viagem da qual nunca retorno. É onde entendo o Brasil, onde me sinto em casa mesmo longe, onde meu pai me acompanha em cada esquina, em cada grade de sacada, em cada parede de azulejo, em cada Ourivesaria.

Parece que lhe escuto a dizer:
Olha o Santo Antoninho ali naquela fachada.
Vê esta cidade e não te esqueces: foi daqui que partimos.
Anda, vamos comer um docinho, o que é do gosto regala a vida.
Compra esta Nossa Senhora da Conceição, é linda...

Camões me convidar a ir: (...) “lá onde a terra acaba e o mar começa.”



E continua:

“Já a vista, pouco e pouco, se desterra
Daqueles pátrios montes, que ficavam;
Ficava o caro Tejo e a fresca Serra
de Sintra, e nela os olhos se alongavam.

Ficava-nos também na amada terra
O coração, que as mágoas lá deixavam
E já depois que toda se escondeu,
Não vimos mais, enfim, que mar e céu.”

Eça em “A Relíquia” completa a viagem de Camões:

“Depois, uma manhã, cortando a vaga azul, avistaria a serra fresca de Sintra; as gaivotas da pátria vinham dar-me o grito de boa acolhida.”


O barco de Camões encontra seu porto seguro e, em terra firme Pessoa me convida para o seu Chevrolet:




“Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
(...)”

A Serra de Sintra – como não pensei antes?


Leio em Saramago:

“Todos os caminhos vão dar a Sintra. O viajante já escolheu o seu. Dará a volta por Azenhas do Mar e Praia das Maçãs, espreitará primeiro as casas que descem a arriba em cascata, depois o areal batido pelas ondas do largo, mas confessa ter olhado tudo isto um pouco desatento, como se sentisse a presença da serra atrás de si e lhe ouvisse perguntar por cima do ombro: “Então, que demora é essa?“

Em Saramago decido: quero ir à Sintra

Não posso deixar o Prêmio Nobel esperando uma resposta e, no primeiro dia de outono, deixo Lisboa para trás e a Serra de Sintra toca o céu lá longe.

Não darei adeus à Europa como Vergílio Ferreira: “Sintra é o mais belo adeus da Europa quando enfim encontra o mar. Camões o soube quando os seus navegadores a fixaram como a última memória da terra, antes de não verem mais que “mar e céu”. E no entanto, ou por isso, o espaço que ela nos abre não é o da infinitude mas o do que a limita a um envolvimento de repouso. Alguém a trouxe de um paraíso perdido ou de uma ilha dos amores para uma serenidade de amar. Ela é assim o refúgio de nós próprios e de todo o excesso que nos agride ou ameaça.”

Ao contrário, começarei a ver a Europa por ali.

Buscarei em Portugal também o amor de Pedro e Inês, a “Sofia” de Coimbra, o túmulo que espera o rei que nunca voltou da guerra, um claustro onde eu possa sentar e “ouvir” um monge rezando no curso infinito da água de uma fonte, um doce bem doce, um porto aveludado e de cor ruby.

Já no meio da subida a presença maciça de plátanos, sobreiros e pinheiros parece a cada curva competir com o mar que vai ficando mais longe, mas obstinadamente volta a aparecer nos Sete Ais, no Castelo dos Mouros, no Palácio da Pena, sumindo nos Capuchos e em Monserrate.

Em certo momento parece que paro e a natureza passa por mim, desfilando seus tons de verde, amarelo, vermelho e em algum lugar que não sei onde vou buscar a lembrança: “e alguns plátanos já nus, que cansados de tanto calor soltam as folhas no chão.”




Hans C. Andersen, em seu diário “Uma Visita a Portugal”, diz: “A mais bela e decantada parte de Portugal é a inigualável Sintra; ... Diz-se que todo o estrangeiro poderá encontrar em Sintra um pedaço da sua pátria. Eu descobri aí a Dinamarca.”


Os plátanos agora ocupam todos os lugares, fora e dentro de mim. Antes de caírem seus galhos e folhas regidos pelo vento, imitam ora o mar, ora os pássaros, ora uma canção de ninar que ficou lá atrás e que suave me embala novamente.



Piso leve neste tapete, são minhas lembranças.

Manuel Tavares terá mesmo razão? De algumas viagens não se volta? Ou será que alguns lugares nunca se deixam?




Para saber é preciso se lançar, o caminho fará o resto.